LUMPEMPROLETARIADO E CEGUEIRA SOCIOLÓGICA

Principalmente em países latino-americanos, como Brasil e Argentina, há uma necessidade urgente de uma discussão teórica sobre as classes sociais no capitalismo contemporâneo, com ênfase na sua classe marginal (lumpemproletariado), que se expandiu intensamente durante o regime de acumulação integral (1990- atual) e tornou-se uma força política importante, tanto pela possibilidade de cooptação político-partidária, como pela postura política de maior protesto contra o neoliberalismo e seu regime de acumulação abrangente, que setores desta classe adquiriram (movimento dos desempregados , precários/subempregados, sem-abrigo, sem-terra) da mesma forma que constitui uma alavanca fundamental de acumulação de capital na contemporaneidade, exercendo pressão descendente sobre os salários e disciplinando a classe trabalhadora e servil (classe dos trabalhadores dos serviços), através de uma pedagogia social de medo do desemprego e da miséria.
Os debates sobre a nova pobreza, desigualdade social, exclusão social, etc. que envolvem o modo de vida desta classe marginal são incapazes de expressar concretamente a dinâmica do processo de marginalização da divisão social do trabalho como uma característica da dinâmica capitalista, com diferenças nos períodos de curso ascendente e descendente da acumulação capitalista e seu regime de acumulação histórico, pois “a partir da episteme burguesa e de suas construções intelectuais é impossível desenvolver uma consciência correta da realidade” (VIANA, 2018).
Prova desta impossibilidade são os diversos construtos (falsa noção de realidade, deformação da realidade) desenvolvidos pela ciência social burguesa com o objetivo de compreender esta classe social e a dinâmica da sua atual expansão: o subproletariado (Goulart, 2012; Singer, 2012; Braga , 2012; Wacquant, 2013), precariado (Braga, 2012; Standing, 2014), novo proletariado plebeu (Svampa, 2009), proletariado marginal (Svampa, 2017) e muitos outros termos (socialmente excluídos, massa marginal, etc.) que revelam a dificuldade de teorizar (expressar concretamente) que afeta setores da intelectualidade na contemporaneidade.

Por essa razão o NECCSO vem desenvolvendo pesquisas sobre essa classe social marginal no capitalismo contemporâneo e em breve as torna pública por aqui.

A PRIVATIZAÇÃO DOS PRESÍDIOS: A CONTRIBUIÇÃO DO GOVERNO LULA (2023)

15/10/2023

            A tão difundida palavra esperança, que apareceu em toda campanha eleitoral do governo atual, está prestes a se tornar desespero para muita gente, ou melhor, para as classes inferiores: em nove meses de governo, ao contrário do que seus entusiastas desejavam, a escalada repressiva continua progredindo em terras brasileiras.

            Já no primeiro semestre deste ano, especificamente no mês de abril, algo inimaginável até então ocorreu. Através de decreto presidencial (nº 11.498/2023), que se apresenta como “incentivadora de benefícios sociais”, possibilitou-se ao Estado realizar parcerias público-privadas (as famosas “PPP”) nas áreas de segurança pública e sistema prisional. Em termos práticos, o atual governo viabilizou a efetiva privatização dos presídios.

            Essa viabilização legislativa já permitiu a sua implementação ainda neste ano no presídio de Erechim/RS, que servirá como uma espécie de “projeto piloto”. No dia 06 de outubro, reunidos na Bolsa de Valores em São Paulo, com o apoio do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), o Estado do Rio Grande do Sul realizou leilão desta PPP no novo presídio de Erechim. O estado gaúcho arcará com a sua construção e estruturação, com gasto aproximado de 150 milhões de reais, entregando a gestão às mãos privadas pelo período de 30 anos. Como não poderia deixar de ser, o trabalho do preso será explorado[1].

            Essa não é uma novidade mundial. Em outros países, como os Estados Unidos, entregaram-se às empresas a gestão dos presídios e, para além do discurso ideológico da “ressocialização”, que serviu como discurso legitimante, constatou-se um encarceramento em massa sem precedentes naquele país, algo que potencializou o controle social das classes inferiores, transformando-o em lucro à burguesia (CHRISTIE, 1998).

A efetiva privatização dos presídios é algo que há muito tempo enfrentava uma resistência à sua implantação nacional. Nem mesmo os governos que discursavam abertamente neste sentido conseguiram avançar com tais propósitos. Diferentemente dos seus antecessores, o governo de Lula já sinaliza que usará (e muito) do aparato estatal para a repressão das classes inferiores. Com essa iniciativa, a ampliação da privatização dos presídios aos demais estados do Brasil é uma tendência evidente, algo que certamente contribuirá com maior nível de encarceramento.

Mudam-se governos, mudam-se governantes, revezam-se entre eles a esquerda e a direita, mas a essência continua a mesma: o Estado é um aparato privado do capital que, inclusive em épocas de ditadura burguesa velada (também conhecida como democracia), não abre mão dos seus recursos repressivos como uma das formas de regularização das relações sociais burguesas.

Referências

CHRISTIE, Nils. A indústria do controle do crime. Rio de Janeiro: Forense, 1998.


[1] Para maiores detalhes, conferir <https://estado.rs.gov.br/definida-empresa-que-sera-responsavel-por-ppp-de-presidio-em-erechim&gt;. Acesso em 08/10/2023.

A REPRESSÃO COMO FORMA DE REGULARIZAÇÃO NEOLIBERAL NO CHILE

Foto ilustrativa – repressão contra estudantes no Chile em março de 2023[1].

Poucos meses após a promulgação da lei “Nain-Retamal” no Chile, a qual modificou o Código Penal nacional para prever uma espécie de presunção de legitimidade das ações das forças repressivas chilena, nesta semana (27/04) acompanhamos mais um caso de repressão naquele país – mas agora acobertada pelo manto da legalidade presumida.

Há poucos dias, os estudantes se organizaram para exigir melhoras nas condições de ensino, como investimentos nas infraestruturas das escolas, maior quantidade de professores e mudanças nos conteúdos ensinados. Desta organização entre os estudantes resultou em um protesto no centro de Santiago, capital chilena, em frente ao Ministério da Educação. Não tardou e o presidente Gabriel Boric, eleito recentemente com aplausos exaustivos da esquerda, enviou os carabineiros para a repressão àquele grupo de estudantes, batendo e prendendo diversas pessoas que ali estavam – todos estudantes secundaristas. Boric, porém, já havia anunciado seu intento repressor: “os que querem utilizar de meios violentos para defender suas reivindicações terão que responder perante a lei”.

Boric sabia que, com esse discurso, estava dada a autorização para uma ampla repressão aos estudantes. Com a mesma sagacidade que chamaram de “estudantes” aqueles que estavam encapuzados – e criando uma representação do manifestante-criminoso –, os carabineiros aproveitaram para reprimir todos os manifestantes, criminalizando-os. Essa tática, que não é nova, vem demonstrar a necessidade que todos os governos têm, seja de direita ou de esquerda, para reprimir quaisquer movimentos sociais que venham a expor suas respectivas condições e exigir melhorias. No caso, estudantes do ensino secundário, inconformados com as condições precárias de aprendizagem, foram às ruas expor o quadro educacional chileno: falta de professores, prédios com estruturas problemáticas, falta de comida, além de outros.

Trata-se, mais uma vez, de uma verdadeira repressão contrainsurgente, em que o Estado, principal forma social, utiliza seu aparato repressivo contra grupos específicos, criando, com isso, uma espécie de recado a todo e qualquer movimento social que busque se organizar e lutar. É uma resposta estatal já conhecida não somente no Chile, mas também em outros países da América Latina, como Argentina e Brasil.


[1] Disponível em: https://www.laizquierdadiario.com/Vuelven-las-protestas-estudiantiles-a-Chile-y-el-Gobierno-de-Boric-amenaza-con-usar-a-Carabineros. Acesso em 29/04/2023.

ESCALADA REPRESSIVA NO CHILE: A REGULARIZAÇÃO E LEGITIMAÇÃO DO GATILHO FÁCIL

O Núcleo de Estudos sobre Capitalismo e Contestação Social da Universidade Federal do Paraná (NECCSO/UFPR), desde seu princípio, desenvolve suas pesquisas sobre a sociedade capitalista, seu desenvolvimento e sobre as relações sociais criadas a partir deste modo de produção, utilizando do materialismo histórico-dialético como teoria e método de análise.

Uma das linhas de pesquisa presente nos estudos do NECCSO é justamente a repressão estatal, isto é, o modo pelo qual o Estado, aparato privado da burguesia, utilizando-se de suas instituições (polícia, ministério público, poder judiciário, etc.), busca conter a luta de classes. Citamos, como exemplo, os estudos desenvolvidos por pesquisadores do NECCSO, os quais demonstram que a repressão estatal é, na atual fase do capitalismo (regime de acumulação integral), intensificada pelo Estado neoliberal; necessitando dessa intensificação para conter os crescentes questionamentos sociais, seja através da repressão de manifestações (repressão contrainsurgente) ou para fins preventivos, seja da ameaça à propriedade ou da possibilidade de se organizarem para lutar contra sua condição de classe, com isso, impondo disciplinamento social (repressão preventiva) a fim de reproduzir as relações sociais capitalistas (BRAGA, GROTTI, SCHIO etc.).

No âmbito da repressão preventiva, uma das formas pelas quais o Estado a exerce é através da execução de milhares de jovens lumpemproletários diariamente pela polícia, a qual conta com a proteção de outras instituições estatais, como o ministério público e o poder judiciário, para garantir a legitimidade dessas ações mediante o rótulo jurídico de “legítima defesa”. Para além dessa interpretação jurídica decorrente de uma construção discursiva feita pela própria polícia, podemos afirmar que são casos de “gatilho fácil”, expressão esta advinda dos Estados Unidos da América como happy trigger, e usada também em outros países, como Argentina, pelo nome de gatillo fácil. Através do gatilho fácil, cujas vítimas pertencem em quase sua totalidade às classes desprivilegiadas, o Estado mata cada dia mais, como é o caso do Brasil, em que a polícia matou mais de 6.000 pessoas no ano de 2021[1]. Mesmo diante de tal quantidade de homicídios praticados por agentes do Estado, em casos excepcionalíssimos os policiais são processados – em 99% das vezes, o caso é arquivado – e, menos ainda, condenados.

Os casos de gatilho fácil, contudo, não ocorrem somente no capitalismo brasileiro, mas em todo o capitalismo (imperialista e subordinado). Nos Estados Unidos, a polícia matou 1.027 pessoas no ano de 2022, somando um total de 6.135 mortos pela polícia entre os anos de 2017-2022[2]. Na Argentina, por exemplo, 80 pessoas foram mortas por gatilho fácil no ano de 2022, totalizando cerca de 803 pessoas assassinadas pelo Estado Argentino entre os anos de 2016-2022[3].

Não temos ainda informações referentes ao número de mortos pela polícia chilena, contudo, um fato chamou a atenção do NECSSO. Na última quarta-feira (29/03/2023) foi aprovado no Chile o projeto de Lei “Naim-Retamal”, instituindo um dispositivo jurídico denominado de “legítima defesa privilegiada”, destinada para os policiais carabineiros chilenos, uma espécie de polícia militar chilena, e estabelecendo a noção de “presunção de inocência privilegiada”, a qual servirá para o uso de armas e meios de defesa por parte dos policiais. Em outras palavras, essa alteração legislativa fornece para os policiais o respaldo legal para suas ações, presumindo que sempre estarão agindo dentro da lei. A lei, que leva os sobrenomes dos cabo e sargento, respectivamente, mortos em confrontos, chama a atenção pelo forte acento pró-repressão, conforme seu próprio texto legislativo onde propõe a alteração:

Artículo Único.- Para incorporar en el ordinal 6 del artículo 10 del Código Penal, los siguientes incisos tercero y cuarto nuevos:

Se presumirá legalmente que concurren las circunstancias previstas en este número y en los números 4° y 5° precedentes, tratándose de las Fuerzas de Orden y Seguridad, en el ejercicio de sus funciones cualquiera que sea el daño que se ocasione al agresor, respecto de aquel funcionario que rechaza el acometimiento, vías de hecho mediante artes marciales o agresión mediante el uso de objeto contundente, arma blanca, o armas de fuego y del que impida o trate de impedir la consumación de los delitos señalados en los artículos 141, 142, 150 A, 361, 362, 390, 390 bis, 391, 397, 433 y 436 de este Código.

A argumentação, como em muito correu aqui pelo projeto de lei proposto à época (2020) pelo ex-ministro de justiça e segurança pública, Sérgio Moro, hoje Senador pelo Estado do Paraná, chamada de “Pacote Anticrime”, também previa a ampliação do escopo legal e discursivo da legítima defesa. Aqui, foi um projeto de lei quase natimorto, pois não foi adiante desde sua proposição em 2019; no Chile, todavia, foi aprovado por ampla maioria em 2023 na Câmara, com poucas abstenções vindas de alguns políticos do Partido Comunista Chileno e da coalizão El Frente Amplio, que compõem a base governista de Gustavo Boric. O projeto de lei partirá agora para o Senado, com a mesma expectativa de ampla aprovação, para então seguir para a aprovação da presidência, em movimentos semelhantes com o processo legislativo brasileiro.

A conclusão não poderia ser outra: o Estado chileno tenta pôr uma pá de cal em toda e qualquer discussão sobre gatilho fácil, dando um cheque em branco à sua polícia para que esta possa matar qualquer pessoa das classes desprivilegiadas sem qualquer ameaça de punição. Mas, não podemos nos enganar: este novo mecanismo jurídico não visa proteger o policial da punição, simplesmente. Isto é o que o texto da lei deixa explícito, mas existe algo oculto que apenas conseguimos compreender quando analisamos o texto da lei em conjunto com a totalidade das relações sociais da qual esta lei busca regularizar.

Primeiramente, ao proteger o policial da punição, também se protege aquele que não apenas possibilitou, mas também estimulou o aparato policial a agir de tal maneira, que é o próprio Estado em sua forma neoliberal. Sem processos jurídicos e sem condenações, evita-se uma discussão geral sobre a repressão e violência enfrentada pelas classes inferiores e, assim, conserva-se intacta a legitimidade do Estado capitalista.

Em segundo lugar, não é por acaso que surge agora esta lei que facilita a repressão preventiva, uma vez que a acumulação de capital está em baixa. Em momentos como este, as contradições do capitalismo vão se revelando mais abertamente, o que gera a necessidade de uma resposta das classes inferiores. Esta resposta, muitas vezes, vem em forma de protesto, manifestações, revoltas etc., como as que estão ocorrendo no Peru e ocorreram no Chile em 2019 e 2020, o que pode acabar gerando uma politização geral das lutas. E é exatamente isto que se quer evitar com a repressão preventiva: o ressurgimento das manifestações e protestos que questionam as relações sociais capitalistas e que pode se alastrar como fogo em madeira seca. Por conseguinte, o Estado neoliberal, com o auxílio de seu aparato policial e jurídico, deve manter as classes desprivilegiadas conformadas, mesmo que isto signifique matar, sem nenhum motivo evidente, seres humanos pertencentes às classes inferiores. O Estado chileno está dando um passo além e, não só legitimando, mas demonstrando que necessita ampliar a repressão preventiva para conter a luta de classes. Caso seja aprovado em todo o seu trâmite, seria uma nova fase repressiva, sem precedentes, na contemporaneidade.


[1] Os números de homicídios desta natureza referentes ao ano de 2022 ainda não foram divulgados.

[2] Fonte: Statista. Disponível em < https://www.statista.com/statistics/585152/people-shot-to-death-by-us-police-by-race/>. Acesso em 31/03/2023.

[3] Dados obtidos pelo Relatório Anual da Coordinadora Contra la Represión Policial e Institucional (CORREPI). CORREPI. Antirrepresivo 1983-20922. A 40 años de democracia, es urgente una agenda contra la represión. 2023.